Mexer ou não mexer, eis a questão
Nuno Amieiro (NA): Professor, até que ponto faz sentido pensar-se em alterar a «configuração física» a um jogador para que este venha a ser algo mais do que aquilo que é? Isto é, no sentido de, por exemplo, o «engrossar» para ser mais resistente ao choque ou para ir ao encontro de um qualquer estereótipo corporal de defesa, médio ou avançado?
Vítor Frade (VF): Antes de mais, é necessário reflectir sobre a designação que está a utilizar, a expressão «configuração física». Por exemplo, diz-se muitas vezes o seguinte: “Aquele jogador não vai jogar porque tem um problema físico”. Será que quem diz isto está a querer dizer que lhe falta resistência ou qualquer outra coisa relacionada com o físico? Não. Por isso, para mim, o que o jogador tem é um problema clínico. É preciso algum cuidado com a terminologia para que o entendimento das coisas seja um determinado. Em relação à sua pergunta, parece-me mais ajustado falar em morfotipo do jogador e, no meu entender, pensar-se em o alterar é uma asneira de todo o tamanho. As exigências que regularmente o indivíduo vai enfrentando vão tornando-o mais resistente e mais capaz e não devemos querer ir mais longe do que isso, pois na tentativa de ganhar determinadas coisas, iremos perder uma série de outras coisas.
Não me custa nada reconhecer que, para certas posições e funções, o morfotipo e a estatura são relevantes, em termos de média. Mas, por exemplo, no caso do ponta-de-lança até menos do que no caso do defesa central. E mesmo aí todos nós conhecemos defesas centrais de top que são relativamente baixos, onde aquilo que os identifica como característico tem normalmente pouco a ver com o lado externo do morfotipo, aquilo que designou por «configuração física», e muito mais com a articulação e os timings de utilização de uma série de outras coisas. Veja, por exemplo, o caso do Liedson... Ele é «felino» e para ser «felino» e eficaz, tem de ser inteligente, tem de ser capaz de decifrar, de se antecipar... Mas vou-lhe dar outro exemplo. O Pepe tem uma entrevista recente, num jornal espanhol, onde diz que presentemente também está a fazer musculação para o trem superior, para o tronco, porque, refere-o ele, joga-se muito disputadamente, os pontas-de-lança são grandalhões, o tipo de jogo proporciona muitas disputas e, nesse sentido, ele sente a necessidade de ser espadaúdo para poder enfrentar essas circunstâncias. Mas também diz que se sente à nora quando lhe aparece um ponta-de-lança pequenino...
NA: O professor está a querer dizer que ele pode vir a perder algo do Pepe que conhecíamos?
VF: Ele já está a dizer que está a perder!!!... Porque, quando ele não era espadaúdo ou não ia para o ginásio com esse fim, ele foi capaz de ser vendido por 30 milhões de euros e penso nunca o ter ouvido afirmar que os jogadores pequeninos lhe davam problemas... Não sei... Mas, ao que parece, ele agora está a senti-las. Porque, e isto é que é importante que se perceba, a acentuação de qualquer uma que seja considerada como variável tem repercussões no peso que as outras tinham no padrão de relação que existia. E, pelo menos ao nível da formação, esta lógica de pensamento é um absurdo, embora eu também esteja em desacordo com ela no que se refere ao rendimento superior... Era admitir que seria vantajoso «engrossar» o Liedson... O Liedson nunca mais seria o Liedson! E, provavelmente, aquilo que o fez ser Liedson foi o facto de ele não ter esse arcaboiço.
Eu conheci o Anderson e, para mim, ele era potencialmente um dos melhores jogadores do mundo como médio interior. Eu estava convencido de que, a continuar na mesma posição e nas mesmas funções, ele seria do melhor. Precisamente na posição onde hoje é mais difícil de encontrar jogadores daquele tipo. Foi para o Manchester e passou a jogar mais atrás... Disseram logo que tinha de ganhar não sei o quê... E dizem agora que ganhou isto e aquilo... Ganhou o quê? A maioria das vezes eu nem o vejo a jogar. E o que perdeu sei eu muito bem. Dizem que ganhou capacidade defensiva, que está outro jogador e mais não sei o quê. Pois está! Está outro, sem aquilo que tinha e que, do meu ponto de vista, é o mais difícil de ter: capacidade de desequilibar no último terço, capacidade de deixar pronto no último terço, etc, etc... Ora, tudo isto tem origem em dois pontos de conhecimento: o conhecimento de jogo que se tem, ou melhor, que não se tem; e o conhecimento retrógrado, miúpe e mecânico que se tem do que é o Indivíduo. É necessário saber um pouco das duas coisas...
NA: Deixe-me pegar agora no exemplo do Cristiano Ronaldo... A generalidade das pessoas está claramente convencida de que o que ele é hoje enquanto jogador se deve em grande parte ao trabalho de ginásio que desenvolveu e provavelmente continua a desenvolver...
VF: Isso rebate-se com facilidade. O Cristiano tem um morfotipo e joga numa posição que pode permitir que o lado atlético seja um acrescento. Mas eu penso que a juventude dele e o facto de estar a jogar em Inglaterra ainda não o fez dar-se conta do desperdício que é o não uso tão regular da capacidade de drible, de simulação e de engano que ele tinha. E o jogo assente neste padrão atlético em que ele se está a viciar e do qual beneficiam os abdominais e o porte que ele tem, tirou-lhe algo que ele também tinha potencialmente, que era aquele poder de «ginga», que é mais o registo, por exemplo, do Messi. E eu pergunto, alguém no seu perfeito juízo é capaz de dizer que o Cristiano Ronaldo é melhor do que o Messi? Na melhor das hipóteses dirão que um é tão bom quanto o outro. E o Messi é exactamente o oposto em termos de morfotipo: é pequeno, enfezado,... E é doente, pois tem problemas metabólicos.
Acho que o que é fundamental é que o jogador tenha a capacidade de resistir e de ter força... Mas é importante que se perceba o que eu quero dizer com isto, pois não tem nada a ver com o entendimento comum... Repare na conversa que há pouco estávamos a ter sobre o Fábio Coentrão. O Coentrão, sendo um indivíduo débil, frágil, numa disputa de bola contra dois jogadores matulões do FC Porto, o Cissokho e o Rolando, conseguiu, com uma «ginga», sentar os dois e ir embora com a bola... Isto, para mim, é que é ter força. Ter capacidade de arrancar, travar, voltar a arrancar mas pelo lado contrário...
NA: O Fábio Coentrão é claramente o tipo de jogador que, normalmente, sente na pele este modo mutilador de pensar... «Ele é bom jogador, mas falta-lhe...»...
VF: Porque a lógica que está implantada é a lógica da burrice. A cada passo vemos e ouvimos apregoar uma série de slogans que vão ao encontro desse tipo de raciocínio. Até na escolha dos miúdos ao nível da formação se ouve, sistematicamente, coisas como «Eh pá, é habilidoso, mas é pequenino». É um absurdo. Por exemplo, o Liedson, não sendo um fora-de-série, ao nosso nível é um jogador fantástico e é pequenino, como o era o Romário e uma série de outros bons jogadores.
Mas o ridículo desta questão é fácil de constatar. Se nós formos perguntar aos indivíduos que fazem a apologia do físico, da altura, do corpo «engrossado» qual é o melhor jogador do Benfica, quase todos eles respondem que é o Aimar. Se perguntarmos em relação ao Sporting, quase todos eles dizem que é o Liedson e o João Moutinho. Se perguntarmos em relação ao FC Porto, quase todos eles referem o Lucho, que por acaso é alto, mas não é de cabeça que ele sobressai e é adelgaçado. Se perguntarmos em relação ao Barcelona, quase todos eles apontam o Messi, o Xavi e o Iniesta... Da mesma maneira que quando perguntaram a um ex-director técnico nacional do atletismo o que ele pensava do Usain Bolt, o campeão olímplico dos 100 metros, ele respondeu que era «um diamante em bruto». Um indivíduo que acaba de bater todos os recordes é «em bruto»? Está implícito na resposta dele que, quando o Usain Bolt fizer musculação e uma série de outras coisas, vai voar como os crocodilos... Mas, espere lá, os crocodilos não precisam de voar para serem crocodilos!... O que se deveria fazer era parar e pensar que a seguir ao Carl Lewis, todo o morfotipo que surgiu era de indivíduos estilo Caterpillar e que, agora, aparece este atleta com um morfotipo longilíneo a bater todos os recordes. Mas é o próprio Usain Bolt quem diz que não faz musculação, que treina na relva e que as únicas cargas que utiliza é ao fazer competições de 60 metros com um colega a puxar um pneu. E diz que dança muito por ser da terra do reggae!
Quem souber um bocadinho sobre aprendizagem motora, sobre coordenação motora, sobre timing de manifestação muscular e de coordenação muscular, etc, acaba por se afastar dessa forma de pensar que é mutiladora. Mas até aqui na faculdade há professores que dizem que o músculo é cego. Cegos são eles, porque o músculo é, manifestamente, muito mais, um orgão sensitivo do que um orgão gerador de potência. E, se calhar, ao mesmo tempo que dizem que o músculo é cego, defendem que é importante a proprioceptividade. Ou seja, não sabem o que estão a dizer. Porque a proprioceptividade é precisamente o que faz do músculo fundamentalmente um órgão sensitivo. Portanto, uma série de mecanoreceptores que se alteram para captarem, digamos assim, a evolução do corpo no tempo e no espaço. Ora, o futebol de qualidade, para qualquer posição, apresenta uma diversidade de agilidade e mobilidade que... Eu costumo dizer que a ignorância é atrevida p’ra caraças...
NA: Um dos argumentos de que eu me costumo servir para tentar evidenciar o quanto pode ser prejudicial querer «transformar» um jogador tem a ver com algo para o qual o professor alerta frequentemente... Eu, enquanto elemento da minha espécie ainda não estou totalmemente adaptado ao bipedismo e, portanto, muito menos preparado para jogar futebol. Ou seja, eu tenho uma história, para o caso «motora», que, em parte, partilho com a minha espécie e que, em parte, é pessoal, fruto das minhas vivências. Se pensar em ir «engrossar» ou tentar ganhar algo que, em termos corporais, não tenho, vou estar a interferir com essa história, que é património meu. Com isso, provavelmente, vou estar a hipotecar muito desse «património coordenativo» que o envolvimento a que estive sujeito durante anos me levou a adquirir «contra-natura» hominídea!
VF: Eu já não quis ir por aí, porque esse caminho levar-nos-ia a 3 ou 4 horas de conversa... Mas, repare, é também preciso perceber que à volta de tudo isto há um jogo de interesses muito grande. Por exemplo, qual é uma das indústrias mais ricas do mundo? É a indústria do armamento. E alguém fabrica o que quer que seja para não vender? Com certeza que se têm de criar condições para que as coisas se usem... E depois, no caso do futebol, a publicidade também assume um papel muito importante, pois vem dizer que uma série de coisas são indispensáveis, que é necessário fazer isto e aquilo para que se marque dois golos com um pontapé só, e servem-se de alguns exemplos que facilmente caem no absolutismo pela falta de conhecimento que as pessoas têm acerca do jogo e acerca do Indivíduo.
NA: Para acabar, uma pergunta muito directa: porque é que o facto de eu ir fazer musculação vai alterar aquela que é a minha história de relação com o corpo?
VF: De um modo muito simples, porque altera a relação do corpo com o corpo, ou seja,... Há dois tipos de timing. O timing coordenativo dos músculos entre si, que é a co-contractividade, portanto, vão existir cadeias que passam a degladiar-se, que se passam a estorvar umas às outras. Porque é uma coordenação que se coloca contrária à fluidez que sugere e solicita a espontaneidade do jogo de futebol. Para além disso, há outro tipo de timing, que tem a ver com o ajustamento muscular à alteração sistemática regular que o envolvimento coloca. Ao fazer musculação vai estar a bulir com isso, vai estar a enganar o sistema nervoso. Portanto, vai obstruir o leque de possibilidades de manifestação que o corpo tinha a jogar futebol. E se o fizer quando em desenvolvimento vai inclusivamente bloquear o crescimento, por exemplo, dos ossos e de outras estruturas. Vai hipertrofiar uma zona que é muscular quando nós sabemos que os tendões não se desenvolvem da mesma forma... Porque não é natural! É como aqueles indivíduos que tinham uns carrinhos pequeninos e lhes rebaixavam a colaça, colocavam umas jantes largas, uma suspensão mais dura, etc, para se armarem em corredores... Só que depois partiam os carros por outro lado...
segunda-feira, 30 de março de 2009
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Deixo aqui um texto interessante de Manuel Sérgio sobre o Roger Federer que de alguma forma se enquadra com o que foi dito no post.
ResponderEliminarhttp://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=2727
António Gouveia - FADEUP
Caro António, obrigado pela sugestão de leitura. Eu já gostava do Federer, mas agora... Muito bom!
ResponderEliminarUm abraço e continue a mandar pequenos «tesouros» como este!
Excelente matéria!
ResponderEliminarConcordo plenamente com o professor Frade.Aqui no Brasil muitos garotos talentosíssimos são ignorados por falta de estatura ou de massa muscular. Tive a oportunidade de atuar ao lado de Marcio Mossoró que hoje defende o Braga quando éramos do sub-17, sua baixa estatura era compensada com muita habilidade e agilidade, para mim, o melhor defesa central que vi atuar foi Gamarra com seu poscionamento e tempo perfeitos. Enfim, acho pertinente essas colocações e reitero que aqui no Brasil estamos perdendo muitos talentos por causa desse preconceito,alguns migram para o futsal, outros simplesmente abandonam o sonho.
Abraços!
Marcus V. Henriques Canesqui - Brasil