sexta-feira, 29 de maio de 2009

OPINIÃO

“Um Reino Mágico de Fantasia”
SER(á) no treino?!

por Mara Vieira

Era uma vez um “reino mágico de fantasia” onde tudo acontecia: correr, saltar, trepar, cair, gritar, rebolar, sorrir… Nesse reino onde tudo era possível havia vários tempos e espaços onde meninos e meninas agiam espontaneamente num imenso espectáculo de imagens e sensações. Era o reino do faz de conta, no qual a bola era o objecto mais amado com o poder de encantar e hipnotizar. Assim, sem se saber como nem porquê eis que todos se preparavam, dia após dia, para mais uma celebração: “Ir jogar à bola”. As leis desta celebração eram a do “contágio” em torno do objecto amado e a da “atracção” pelo qual todos se reuniam em comunhão. Também, comungavam da mesma vontade: viver e criar momentos de fantasia. O(s) celebrante(s) era(m) eleito(s), naturalmente, pelo poder do que evocavam: fintas, dribles, simulações... Verdadeiras “fórmulas mágicas”! Emergia, assim, uma simpatia pelas formas imitativas e miméticas que convertiam o celebrante no próprio poder que ele conjurava.

Era o maravilhoso reino da infância onde tudo era mágico! Onde, inconscientemente, se viviam as primeiras experiências, talvez as mais antigas do encontro do Homem com a fantasia criativa da sua cultura. Partindo destas recordações e vivências, mas, fundamentalmente, pelo trabalho desenvolvido nos últimos anos com jovens jogadores, arrisco dizer que é urgente reequacionar a concepção e intervenção no treino de crianças/jogadores sob pena de “matar” em vez de fazer “desabrochar”.

Para isso, o treinador não deve ser um técnico armado de conceitos, tantas vezes abstractos (como, por exemplo, “jogar em bloco”, “jogar nas e entre linhas”, “manter o equilíbrio da equipa”,...), mas um contador de histórias que contempla e respeita o “reino mágico de fantasia” fazendo do processo de treino e do jogo uma história interminável, na qual cada criança/jogador parte das suas potencialidades e da sua singularidade rumo à transcendência.

A história que se conta, também ela singular, é o nosso jogar! E é a que quisermos!... “Era uma vez uma equipa que tinha um castelo onde ninguém podia entrar. Nesse castelo havia uma princesa (baliza), que tínhamos que salvar dos maus (adversários), mas também havia guardas e dragões. Os guardas protegiam as portas e janelas e os dragões estavam no meio do castelo para expulsar os que se atrevessem a entrar…”. E as crianças, pelo menos as mais novas, entendem bem a linguagem dos símbolos dos contos. São elas que inventam no seu dia-a-dia o jogo do “faz de conta” e tantos outros que as divertem e distraem em tempos vividos entre a imaginação e a realidade. Assim, ainda que a criança necessite de contrapontos para situar a sua própria vivência e o seu equilíbrio talvez não se deva “explicar” o sentido dos “contos”. As imagens e as acções são “as palavras explicativas”.

Príncipes, fadas, duendes, castelos, casas, florestas enormes…”ronaldos”, “messis”, “robinhos”, “zidanes”… guardar portas e janelas…. São imagens e acções simbólicas que oferecem a possibilidade da(s) criança(s) sair(em) vitoriosa(s) do “conto” - o nosso jogar - desde que a linguagem toque directamente no inconsciente, ajudando-a(s) a colocar(em) ordem no seu mundo interno. Ao ouvir um conto ocorre, ou não, a identificação. Se ele for condizente com a situação interna, a identificação é imediata e dá forma para enfrentar as dificuldades. Paralelamente, enriquecem-se as brincadeiras que dão forma ao(s) desejo(s): SER jogador de futebol!

A imaginação da criança constrói-se com símbolos extraídos da realidade, que reforçam as suas estruturas e alargam os seus horizontes, desde que num ambiente rico de impulsos e de estímulos. Como refere Jung, “Quando crianças, vivemos num mundo mágico e mitológico porque para além dos instintos e impulsos, somos arrebatados pela imaginação”. Penso que é a imaginação que dá as crianças aquele brilho nos olhos, um tom rosado nas bochechas, os sorrisos e os comportamentos espontâneos e inesperados. E é nesse momento que elas fazem qualquer pedrinha virar uma bola encantada brincando com “o conto” em qualquer espaço: nos jardins, na rua, em casa…

Neste sentido, promover a brincadeira no treinar é fundamental, não pela simples recordação de impressões vividas, mas pela reelaboração criativa do nosso jogar. Um processo através do qual a criança combina entre si os dados da experiência para construir uma nova realidade, que responde às suas curiosidades e necessidades. Todavia, “é preciso que disponha de tempo livre para inovar e tomar iniciativas sem precisar, a toda a hora, da autorização de um mestre para lhe indicar um bom caminho”, diz-nos Étienne Guillé. Uma parte difícil de assumir pelo treinador, uma vez que tem que estar preparado para aceitar formas de espírito muito diferentes da sua. Portanto, há que deixar de papaguear expressões como: “vai, vai”, “depressa, depressa”, “joga atrás, agora à frente”, “chuta que não tens ninguém”, “finta”, “joga na raça”, “queima terreno”. Como já aqui alertou Vítor Frade, “só faz sentido existir o treinador se este for interventivo, mas interventivo no sentido de catalisador da apreensão de tudo aquilo que é conveniente e importante para o crescimento do processo”.

2 comentários:

  1. Parabéns pelo texto! Uma excelente reflexão a respeito das metodologias (de forma holística, pedagogias) de ensino/aprendizagem do Futebol (e demais desportos coletivos) na iniciação esportiva.

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  2. Não vai assim há tanto tempo quanto isso andava eu na rua sempre com uma bola nos pés. Ora desafiando os vizinhos ora desafiando miúdos(as) de outros bairros locais. O desafio era excitante porque do outro lado da esquina estava um jogo para ganhar ou um adulto que me queria tirar a bola por lhe estragar os canteiros. Muitas bolas perdi e muitas mais ganhei!!!
    No meu estudo diário (e em conversa com outros) desencantei no prefácio de Jorge Valdano para o livro “Futebol de rua um beco com saída, Jogo espontâneo e prática deliberada” a seguinte citação: “No princípio era bola, o mundo a meus pés, primeiro amor, sem exagero. Logo chegavam os companheiros, os adversários, os espaços. A rua, enfim, onde descobrimos o nosso querido futebol”. Eis a questão: Qual o lugar do treinador? O Pelé no seu livro fala certamente de um treinador no seu futebol de rua… mas não quero ir por aí! O que gostava de acrescentar ao texto é que a essência do futebol de rua contém a brincadeira necessária para a “reelaboração criativa do nosso jogar. Um processo através do qual a criança combina entre si os dados da experiência para construir uma nova realidade, que responde às suas curiosidades e necessidades”. Interferir na essência do futebol de rua (autonomia, níveis de desempenho, espaço, tempo, o objecto de jogo variado, o lado competitivo, o número, etc.) é calibrar o lado não consciente “para inovar e tomar iniciativas sem precisar, a toda a hora, da autorização de um mestre para lhe indicar um bom caminho” (Étienne Guillé cit. Mara, 2009).
    P.S. Se obtiverem autorização era formidável colocar aqui o prefácio do Jorge Valdano.

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