A lição teórica de Guardiola
por Nuno Amado
O futebol do Barcelona 2008/2009 não deixou ninguém indiferente. Enquanto uns ficaram absolutamente rendidos, outros reagiram de forma mais reservada, considerando que numa competição mais exigente do ponto de vista atlético, como é a Liga Inglesa, por exemplo, esta filosofia teria pouco sucesso. Sem nunca se ousar colocar em questão a qualidade de jogo da equipa catalã, surgiu a velha dicotomia beleza/utilidade e muitos foram os que fizeram a defesa da tese de um Barcelona demasiado “macio”, menos pragmático do que o desejado e servido por um conjunto de jogadores que carecia de músculo. Dizia-se que, em encontros contra equipas atleticamente superiores e assaz competentes do ponto de vista táctico, este Barcelona não se conseguiria impor e que, apesar de praticar o mais belo futebol da Europa, esta não era a forma mais eficaz de se ter êxito.
Em primeiro lugar, há que dizer que num jogo de futebol, como em qualquer outro jogo, o belo é sinónimo de bom. Isto porque em qualquer coisa com um objectivo tão claro, como é o caso do futebol, é impossível aceitar que algo que não possa produzir consequências práticas possa ser belo. Depois, o erro crasso é acreditar que falta músculo a este Barcelona. É evidente que, em termos atléticos, esta equipa não é tão capaz como as grandes equipas europeias, mas o erro está em presumir que uma equipa de sucesso, no futebol actual, necessita impreterivelmente dos melhores atletas, no sentido em que estou a utilizar o termo. A musculatura desta equipa existe, ao contrário do que se pensa, embora seja de outra ordem.
É verdade que este Barcelona é tudo isto com que o caracterizam. Mas nenhuma dessas características tem necessariamente de ser um defeito. E esta é a grande lição de Guardiola. Numa altura em que, muitos pensam, se parece caminhar para um desporto cada vez mais musculado, no qual a força física e as capacidades atléticas são decisivas, este Barcelona vem deitar por terra essa ideia. O bom futebol, o melhor futebol, é aquele que é jogado com a cabeça, aquele que dá preferência aos atributos intelectuais. O futebol de hoje é um jogo de pouco espaço. Para muitos, tendo em conta essa evidência, os jogadores mais aptos serão, portanto, os mais rápidos, os tecnicamente mais evoluídos e os mais fortes. Se há coisa que este Barcelona vem provar é que isso, em rigor, não tem de ser assim. Os mais aptos são os mais inteligentes, os que decidem mais rapidamente, os que conseguem "fabricar espaços", os que possuem maiores índices de criatividade, etc.
É inegável que esta equipa joga um bom futebol, mas a sua grandeza não se esgota aí. Mais do que uma excelente ilustração de bom futebol, trata-se de uma verdadeira lição teórica sobre o jogo. Por trás desta equipa está um conceito que vem quebrar não só com muitos dos paradigmas actuais como também vem contradizer ideias e conceitos que, ao longo do tempo, foram elevados ao estatuto de dogma. Enquanto grande parte dos treinadores diz aos seus laterais para nunca jogar no meio, pois é mais arriscado do que jogar em profundidade na linha, este Barcelona postula o contrário. Os laterais devem jogar no meio, porque é no meio que a possibilidade de criação de apoios é maior e porque é regressando ao meio que as possibilidades de escapar ao “pressing” do adversário aumentam. Enquanto grande parte dos treinadores diz aos seus jogadores para não saírem a jogar caso o adversário pressione muito alto, pois é perigoso, este Barcelona não o admite, seja em que situação for. Um excelente exemplo desta “teimosia” foi a final da Taça do Rei. O Athletic de Bilbao optou, sobretudo depois de se encontrar a perder, por pressionar altíssimo, aquando dos pontapés de baliza do Barcelona. A ideia era fazer com que os defesas catalães não tivessem espaço para receber a bola e obrigá-los a jogar a contragosto, com saídas com pontapés longos. O Barcelona não fez caso disto e, ainda que a grande maioria dos treinadores desaconselhasse a sua equipa a sair a jogar nessas condições, saiu sempre a jogar. Com o auxílio dos laterais e do médio-defensivo, que baixou para servir de apoio, a equipa trocava assim a bola dentro da própria grande área, utilizando toda a largura do campo para criar linhas de passe, até que esta chegasse a uma das linhas. Nessa altura, um médio ou o extremo baixava para servir de apoio vertical e, recebendo a bola do lateral, entregava-a de imediato no médio-defensivo, ficando concluída a saída de bola. Alternadamente, dependendo da forma como o adversário pressionava, saíam também pelo meio, depois de conseguirem puxar os adversários para uma faixa e fazendo regressar a bola rapidamente aos centrais. O que é certo é que nunca desvirtuaram a sua maneira de jogar, mesmo correndo riscos tão elevados. Enquanto grande parte dos treinadores diz que não quer "rodriguinhos", que a equipa tem de ser objectiva, que um passe para trás só se faz em caso de aperto e que uma ideia de progressão deve estar sempre presente quando uma equipa troca a bola, este Barcelona vem dizer que isto não é bem assim e que nem sempre é para a frente que se joga, que a objectividade, quando excessiva, se transforma em previsibilidade. Este Barcelona, como joga, torna-se difícil de parar porque nunca se sabe por onde vai entrar, porque o seu futebol não se limita a fazer o mais simples, o mais objectivo, sendo, pelo contrário, complexo e imaginativo. Enquanto grande parte dos treinadores diz aos seus jogadores que qualquer nesga para chutar à baliza deve ser aproveitada, este Barcelona refuta essa velha máxima e Guardiola já disse mesmo que prefere que os seus jogadores, mesmo dentro da grande área, troquem a bola em vez de chutar à baliza. A ideia é concluir o lance apenas quando as possibilidades de êxito são consideravelmente boas.
Por tudo isto, este Barcelona, mais do que uma equipa que pratica um futebol agradável, mais do que uma rara excepção de sucesso com armas diferentes, mais do que um exemplo de bom futebol, fundamenta-se na destruição de predicados ancestrais. Representa uma autêntica reformulação teórica do jogo. E é algo que, perdurando, pode contribuir para modificar a mentalidade que, nos dias que correm, domina o jogo.
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Caro Amieiro,
ResponderEliminarFomos colegas de curso em Aveiro II Nivel, e é um prazer ler as tuas crónicas.
Depois, certas situações que referes ao Barcelona, já eu introduzi a algum tempo nas minhas equipas, sendo que por vezes não é fácil as pessoas entenderem, uma vez que utilizam só o que lhes ensinam ou o que acham que está correcto.
Eu penso por minha cabeça, e nunca fui muito dado a ciências exactas, porque essas aos longo dos anos vem sendo desmistificadas por outras, por isso devemos pensar o jogo não como outros pensam, mas como o entendemos melhor.
Abraço
Pedro
Caro N. Amieiro,
ResponderEliminarJá me apresentei, uns tópicos mais abaixo, mas quero voltar a felicitá-lo pela qualidade e pertinência dos artigos aqui colocados. Nem sempre comento, embora não perca a leitura de tudo o que vai sendo publicado.
Neste sentido, parabéns ao Nuno Amado, autor da crónica sobre o Barcelona, pois o futebol apresentado por esta equipa deveria servir de exemplo a outras realidades.
Contudo, o intuito da minha interpelação é outro e vou ser directo ao assunto: sistema táctico 3x4x3.
A conversa surgiu no twitter, com o Bruno Pereira, do blogue http://www.querosertreinador.blogspot.com/ graças à possibilidade de Jorge Jesus ir treinar o Benfica e saber-se que o 3x4x3 foi um sistema da sua eleição no passado, nomeadamente no Felgueiras. Foi o pretexto para o início de um debate teórico sobre as reais hipóteses do grande português poder estruturar o seu modelo neste esquema típico da 'escola' holandesa.
Gostaria imenso de conhecer o seu pensamento acerca do 3x4x3, quer através da publicação de textos sobre o tema, quer preferencialmente por intermédios de artigos de opinião. Pode ser numa perspectiva geral, de âmbito mais teórico, ou particularizando com o exemplo do Benfica.
Do resultado da minha conversa com o Bruno Pereira, chegámos a algumas conclusões sobre as características dos jogadores que poderiam preencher a posição e dar complementaridade à interligação entre sectores. Surgiu, então, um provável onze titular:
GR Moreira
DD M. Vítor
DC Sidnei
DE D. Luiz
MD Patric/Maxi Pereira
MC R. Amorim/Ramires?
MC C. Martins/Yebda
ME Alvaro Pereira
AD Urreta/Balboa
AC Cardozo
AE Reyes?/Di María?
Questões que se colocaram:
1. Como defender à zona com três defesas? Quais os atributos principais que estes homens devem possuir? Porventura: velocidade, posicionamento, resistência, entre outros?
2. Como 'dar' largura à equipa? São os médios-ala, jogadores do quarteto do meio-campo, ou os denominados extremos, avançados que pisam o último terço de terreno? E em relação à profundidade? A resposta pode estar na assimetria? Ou seja, 'pensar' numa dupla que se complemente, mas com funções inversas em cada flanco? Exemplo:
a) Maxi Pereira (MD) + Urreta (AD): Maxi não prima pela velocidade, nem pelo drible, logo aconselharia-se que fosse Urreta a dar profundidade, graças ao seu virtuosismo e capacidade no 1v1.
b) Alvaro Pereira (ME) + Reyes? (AE): Reyes tem qualidade técnica para interiorizar, vir atrás receber a bola, ocar, tabelar e, inclusive, tentar penetrar no 'muro' contrário ou arriscar o remate de meia-distância, enquanto o uruguaio tem condições físicas e técnicas para fazer o 'overlap' e pisar a linha de fundo.
3. Como proteger a linha defensiva, na transição e no momento que a equipa não tem a posse? Será que o ideal é 'puxar' um dos médios-centro para uma zona mais recuada fazendo, amiúde, de 4. central? Como obstar à suposta superioridade numérica adversária, principalmente na zona central do meio-campo? A solução passaria pela interiorização do médios-ala do lado contrário à bola?
Estas e muitas mais questões poderiam ser colocadas, mas não pretendo estender demasiado o meu contributo. Gostaria imenso que nos elucidasse, pela sua experiência e conhecimentos adquiridos.
Só mais uma coisa: concerteza lembra-se de uma célebre equipa do Ajax da década de 90 que actuava, em variadíssimas ocasiões, no 'dibujo' de 3x4x3. Nessa altura, o n.º da camisola do jogador indicava a sua posição em campo:
1. GR Van der Sar
2. DD Reizinger
3. DC Danny Blind
4. DE Frank de Boer
5. MD Ronald de Boer
6. MC Frank Rijkaard
7. AD Finidi
8. MC Edgar Davids
9. AC Patrick Kluivert
10. Jari Litmanen
11. Overmars
Fico a aguardar o seu ponto de vista e desenvolvimentos sobre o tema. Se não estou enganado, o próprio Mourinho afirmou, um dia, que o 3x4x3 é o sistema mais 'lindo' (entenda-se o significado) para implementar/jogar.
Abraço.
Parabéns pelo blogue e pela crónica!
ResponderEliminarEstá aqui um belo local para discutir e reflectir futebol!
Em relação ao Barcelona de Guardiola ninguém tem dúvidas sobre a enorme qualidade futebolística que esta máquina produz, algo que há muito não se via igual!
Mas por outro lado, penso que o Chelsea de Guus Hiddink, que eu considero um dos melhores treinadores mundiais, também daria um bom motivo de análise.
O "correctivo" táctico dado ao Barcelona nos dois jogos das meias-finais da Liga dos Campeões, manietou completamente o futebol espectáculo que só, neste momento, a equipa de Guardiola sabe produzir, e a verdade é que, não fossem motivos extra-futebol em Stamford Bridge, a época da equipa catalã poderia cair em esquecimento... Mas agora, caso vença a Champions, este Barcelona ficará, certamente e merecidamente, na história!
Mas o que se passou no jogo de Londres leva-me a uma questão! Qual o objectivo de um jogo de futebol. Jogar bonito ou ganhar? Claro que se pudermos aliar as duas coisas seria excelente, mas o pragmatismo revelado pelo Chelsea, e tantas vezes pelas equipas de José Mourinho, também não será, por vezes, necessário?
Um grande abraço e mais uma vez parabéns!
Manuel Macedo
O caminho mais curto para o sucesso será fazer algo bem feito. Neste caso, se jogarmos bem, as hipoteses de vencermos aumentarão exponencialmente.
ResponderEliminarE nem concordo que as equipas do Mourinho não joguem bem, pelo menos aquelas que tiveram mais sucesso. E só mais uma coisa, haverá maior pragamatismo do que tentar ganhar... Jogando cada vez melhor?
Quanto as incidências da seguna mão, então vamos escamotear as da primeira mão? A verdade é que o Chelsea, em ambas as mãos, apenas tentou manter-se a tona d agua, lutando apenas para não se afogar( atenção que Hiddink é dos treinadores que mais admiro), enquanto o Barcelona manteve sempre o seu rumo. Independentemente, do resultado dessa eliminatória, o Barcelona sairia daquele confronto mais equipa.
Isto porque não abdicou dos seus principios, não por capricho, mas porque compreendem que aquela é a melhor forma de atingir os seus objectivos. A essência do futebol do Barcelona é muitas vezes desprezada, ou ignorada, pela manifestação do seu futebol. O facto de o Barcelona ser uma equipa tão atraente é algo que sobra da excelência de um futebol, que é o melhor, não porque é o mais bonito, mas porque é o que compreende todos os momentos do jogo de forma una.
Um abraço