Centros de alto desperdício
Inevitavelmente estamos a entrar numa nova era do Futebol. Contudo, questiono se este será o caminho mais correcto para promover e estimular aquele que, pela simplicidade das suas regras e prática (ainda que, neste último caso, aparente), se tornou num fenómeno único. Confesso não ter grandes dúvidas de que, a manter-se nesta rota, o futuro do Futebol está ameaçado. Com efeito, pela dimensão que alcançou, nele proliferam oportunistas que, dotados muitas das vezes de uma cegueira premeditada, tentam angariar parceiros, a peso de ouro.
Nos últimos meses, quer na imprensa espanhola quer na portuguesa, pudemos ler algumas reportagens relacionadas com a aplicação de meios ditos “científicos” ao treino de futebol. Deste modo, foi notícia a criação e funcionamento de centros de alto rendimento em clubes como o Real Madrid e o SL Benfica. Com nomes pomposos, respectivamente, Real Madrid TEC e LORD (Laboratório de Optimização do Rendimento Desportivo), estes clubes apresentaram aqueles que parecem ser os seus ovos de Colombo. Aliás, tal como há já muito havia feito o AC Milão com o famoso Milanelo que, por sinal, serve de referência a ambos os projectos.
No Real Madrid, o mentor do projecto foi Valter di Salvo, apelidado de Cristiano Ronaldo da preparação física, cujos poderes são absolutos na parte física e no funcionamento do TEC. Já no Benfica, parece ser Bruno Mendes o responsável pelo LORD, procurando que esta estrutura funcione como elo de ligação entre o departamento médico e a equipa técnica encarnada.
Tratam-se, sem dúvida, de projectos que exigem muita dedicação, empenho (ainda que, a meu ver, não no essencial) e trabalho árduo (embora o burro, por muito que trabalhe, nunca venha a ser cavalo) por parte dos colaboradores e, para gáudio de alguns (cada vez mais), muito dinheiro, sobretudo devido a consultadoria “científica” em diferentes domínios. O que não quer dizer que o façam de forma multidisciplinar, muito pelo contrário, uma vez que o raciocínio subjacente a tais projectos apoia-se num entendimento reducionista e espartilhado do futebol.
Em ambos os casos, os objectivos assemelham-se: fazer um seguimento e possuir um registo “detalhado” de cada jogador e dispor de uma “infinidade de dados válidos e fiáveis”, de modo a que as equipas técnicas rentabilizem os respectivos plantéis. Para tal, socorrem-se de uma panóplia de testes físicos a realizar com grande periodicidade, programas individualizados de fortalecimento muscular para os seus “atletas”, podendo no caso do Real Madrid encontrar-se diferentes espaços, relativos a diferentes departamentos. Neste caso, fala-se na sala da velocidade, na sala da condição física geral, na sala de estudos antropométricos, na sala de estudos biomecânicos e também na “habitação da mente”, o espaço que, pelos vistos, mais impacto tem criado e onde, supostamente, se procura analisar os efeitos que a pressão da competição pode exercer sobre os jogadores. Sinceramente, duvido muito que esta habitação (de)mente, mesmo tendo pressupostos muito válidos e comprovados pelas neurociências, consiga reproduzir, de forma aproximada, por exemplo, a pressão sentida por um jogador no Santiago Barnabéu...
Um dos aspectos mais curiosos das reportagens que puderam ser lidas em torno deste tema, relaciona-se com aqueles que são apresentados como resultados imediatos do LORD. A saber: (1) relatório da UEFA refere o Benfica como a equipa com menos lesões na Europa; (2) recuperação de Suazo, de rotura muscular feita em tempo recorde, apenas 18 dias; (3) os “casos flagrantes” de Di Maria e David Luís que têm actualmente e de forma respectiva, mais 8 e 10 quilos cada um.
Vejamos agora o meu ponto de vista: (1) as recentes e frequentes lesões do Benfica contrariam, inequivocamente, tal relatório (além disso, a UEFA não tem necessariamente de tomar conhecimento de todas as lesões dos clubes e as estatísticas, no futebol, raramente são de confiar, sobretudo quando surgem como auxílio a “vendedores de banha da cobra”); (2) David Suazo após essa recuperação “espectacular” voltou a lesionar-se e não jogará mais esta época; (3) o aumento de peso de Di Maria e David Luíz não se tem reflectido numa melhoria da qualidade dos seus desempenhos, mas antes, no caso do último, num aumento da instabilidade articular que lhe tem valido lesões frequentes; Di Maria não tem lesões, o que dada a sua densidade competitiva não causa admiração, mas apresenta uma evolução ao nível da inteligência de jogo, desesperante e a sua relação com o jogo é cada vez pior (talvez aconteça o oposto na sua relação com as máquinas de musculação...).
Mas a aparente incapacidade geral em reconhecer estes factos, que me parecem evidentes e inequívocos, não é, quanto o mim, o ponto mais grave destas cegueiras. Esse relaciona-se com o desejo de aplicar tais projectos à generalidade dos jogadores da formação. No Real Madrid, o desejo é fazer surgir novos “Raúles, ganadores natos com una gran fuerza mental”. E eu questiono: será que aquilo que fez do Raúl o que ele é tem algo a ver com isto?! E, ultimamente, quantos jogadores da “cantera” têm singrado no Real Madrid?! No Benfica, nos bastidores, pelos vistos diz-se que “os títulos também se ganham assim”. O Benfica é a prova cabal disso mesmo!!!
Antes de terminar, não queria deixar de salientar que, quanto a mim, alguns dos meios apresentados, nomeadamente os que se relacionam com a observação de treinos e de jogos, têm de facto potencialidades. Contudo, caso estes instrumentos não sejam devidamente utilizados, parece-me que apenas servirão para atrapalhar. Como por vezes refere Vítor Frade, é como se tivéssemos, em termos abstractos, uma enorme destreza a utilizar os talheres, mas depois, quando vem a sopa, vamos lá com o garfo! O modo como se usa e abusa deste tipo de meios tem subjacente e é revelador daquela que é, para mim, a maior cegueira que afecta o Futebol: a incapacidade de se decifrar a sua essência. E tal repercute-se nos clubes que deles se socorrem. Pegando nos dois casos apresentados, são equipas que não funcionam como tal, evidenciando uma primazia no plano individual em detrimento do colectivo, à semelhança do modo como parece ser perspectivado o treino nestes clubes. São também equipas que desencantam com a bola e com pouca relação com o jogo, o que não é igualmente de admirar, quando a bola ou mais concretamente aquilo que de qualidade se pode fazer com e sem ela (intencionalidade – Táctica) é relegado para segundo plano em favor de um fisicismo abstracto que, pelos vistos, se pode aplicar de forma semelhante em Madrid ou no Seixal (como se fosse sensato usar o mesmo molde em contextos distintos...).
Este tipo de concepções de treino que querem colocar realidades diferentes no mesmo saco cabem, elas sim, todas no mesmo saco. Por isso digo que a norma do treinar, com mais ou menos “embrulho”, continua obcecada na fomentação das suas maiores cegueiras, o fisicismo e a ânsia de formatar “atletas”. Costuma dizer-se que em terra de cegos quem tem olho é rei, mas, como salienta Johan Cruyff, mesmo assim só conseguem ver com um olho. Daí que se desperdice tempo, talento, dinheiro, recursos,...
Jorge Maciel
terça-feira, 21 de abril de 2009
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Julgo que esta temática não é tão linear.
ResponderEliminarCompreendo o ponto de vista, que aliás é semelhante ao do Prof. Frade.
E embora concorde com muito da sua visão sobre o Jogo, sobre o Treino, não terei forçosamente que concordar com tudo.
Podemos dizer que não faz sentir este tipo de departamentos (como o LORD), podemos dizer que não faz sentido alterar significativamente o "morfotipo" de um atleta.
Mas lanço para debate:
Será que o miúdo do Sporting, o Ronaldo, seria o melhor do mundo hoje sem essa alteração?
Será que o Nani não está a beneficiar desse tipo de alteração?
Será que o Anderson não é hoje mais competitivo? Sim, perdeu-se um número 10 á antiga que no futebol moderno não se encaixa em qualquer equipa, mas ganhou-se um box to box de grande qualidade, através de uma modificação significativa do seu morfotipo e de acordo com as necessidades da equipa que possui o seu passe.
O Prof. Frade diz e bem que ao alterar o morfotipo de um atleta podemos estar a ganhar mas também a perder alguns atributos.
E eu volto a um exemplo: o Ronaldo do Sporting (e tendo em conta a natural evolução que um jogador vai conhecendo com o acumular de experiências, de anos de carreira) chegaria ao patamar em que está hoje caso não tivesse trabalhado a vertente física, através de um programa complementar ao treino?
Não tenho dúvidas que há jogadores mais pequenos, mais franzinas que conseguem ter um alto rendimento.
Mas se calhar o equilíbrio para esta questão está exactamente nos "ganhos e perdas".
Pensemos noutros aspectos: um atleta apresenta uma lacuna numa determinada vertente. Essa vertente é diagnosticada pelo tal LORD que através de um programa específico procura atenuar ou eliminar essa questão.
Não estamos a falar de kilos de peso ganhos, estamos a falar de pequenas situações que podem ser trabalhadas ou potenciadas.
Será que é assim tão errado? Será que é burrice ou desperdício?
Quanto a mim, não me parece tão lienar esta questão.
Contudo e de forma a também eu conseguir ter uma opinião mais firme gostaria de ver argumentos apresentados, argumentos sustentados e irrefutáveis.
Por favor assinem os comentários.
ResponderEliminarDeixo aqui a sugestão de, ao utilizarem este espaço, referirem o vosso primeiro e último nome e, por exemplo, onde vivem ou o que fazem.
Eu, que estou deste lado, tenho sempre a curiosidade de saber quem está desse a contribuir para o debate e reflexão, mesmo que discorde das minhas ideias...
Aproveito também para dizer que comentários mal redigidos não serão publicados. Atenção aos erros grosseiros, falta de pontuação por desleixo evidente, abreviaturas típicas de sms,...
A vossa compreensão,
Nuno Amieiro (Aveiro)
Não vou defender o Benfica e o Real Madrid ou qualquer outra coisa... apenas levantar uma dúvida...
ResponderEliminarNão era o Boavista que tinha um laboratório/departamento onde analisavam os atletas e depois lhes forneciam as vitaminas, etc, em falta de modo a potenciar os índices físicos? Na altura quando me falaram disto, disseram-me que os atletas do Boavista quando iam aos testes anti-doping estavam sempre no limite.
Verdade ou fui enganado?
E sendo verdade, não ganharam eles um campeonato à base da força?
Boa noite
ResponderEliminarJulgo haver uma grande confusão nesta questão do “Lord”, resultante de uma visão redutora sobre o ser humano, o que realmente acontece nesse tal departamento é a optimização do rendimento físico e não desportivo como o próprio nome indica, agora que reflicto melhor, nem físico o chega a ser, pois o esforço dito físico “apurado” nesses laboratórios não se encontra devidamente contextualizado “apresenta uma evolução ao nível da inteligência de jogo, desesperante e a sua relação com o jogo é cada vez pior (talvez aconteça o oposto na sua relação com as máquinas de musculação...)” Jorge Maciel
Numa primeira fase do projecto “LORD” (como em qualquer projecto) teremos que estabelecer os objectivos para a sua fundação, que nestes casos “penso eu” seja a “optimização do rendimento desportivo” como já foi mais do que debatido anteriormente neste blog, o rendimento desportivo não se resume a forma física “A forma não é física. A forma é muito mais do que isso. O físico é o menos importante na abrangência da forma desportiva. Sem organização e talento na exploração de um modelo de jogo, as deficiências são explícitas, mas pouco têm a ver com a forma física.” José Mourinho
Como tal todo o paradigma em que os ditos “LORD” se baseiam terá que alterado, de forma a que estes realmente dêem respostas satisfatórias e rentáveis. Não procurando constantemente treinar apenas um leque especifico de variáveis nomeadamente força velocidade, mas sim variáveis mais pertinentes e rentáveis para a pratica de futebol, e quais são essas variáveis? Como potencializa-las? Quais os Custos?
Um verdadeiro LORD terá que “olhar” para o Homem como um todo e não se limitar a olhar para os seus músculos, terá que ter um trabalho inter-disciplinar resultante dessa visão global. Para um trabalho eficiente o estabelecimento de uma nomenclatura será fundamental, de forma a haver uma fácil comunicação, assim como um modelo taxinómico da actividade, do modo que todas as pessoas (não só do departamento, mas sim de todo o clube) olham para o futebol do mesmo ponto de vista. Mas o que é esse modelo taxionómico? Esse modelo não é mais do que uma forma de representar a realidade, não se pretende traduzir toda a realidade pois para isso já teríamos a própria realidade, mas sim retiramos dela as variáveis pertinentes para o jogo, como a relação entre espaços e velocidade (e não me refiro só a velocidade de deslocamento) assim como tempo.
Outra confusão que reparei nomeadamente do Sr “N” é relativamente ao facto de referir uma certa concorrência entre o trabalho “físico” e o “não físico”. O que o Sr não entendeu foi o facto de não se estar a defender que esses jogadores devam ou não devam evoluir essa tal vertente “física”, mas sim que o façam contextualizado com o jogo e as condições reais de competição, isso caso o diagnostico efectuado aponte para essa lacuna. Poderemos sim por em causa se essa opção seja ou não a mais rentável, exemplificando poderemos investir 30 horas de treino do “físico” e aumentarmos a velocidade de deslocamento do nosso futebolista de 4 m/s para 4,5 m/s e ao fim de alguns meses não se verificará grandes ganhos (vejam os corredores de fundo 100m que para melhorarem as suas marcas em 0,01 s necessitam anos de treino) ou poderemos investir 30 horas de treino no entendimento do jogo, na relação entre espaços e velocidades.